A Christian Comics Brasil já entrevistou artistas com estilo comics, autores da cena independente e até estrangeiros.
Chegou a vez dos cartunistas, muito bem representados por Felipe Carmo, autor das tiras do site Traços do Reino. Além disso, suas tiras ilustram um quadro do programa Hiperlinkados, exibido (no falecido aparelho que os mais velhos ainda assistem chamado televisão) na TV Novo Tempo aos sábados às 20hs ou no canal do YouTube.
Tivemos uma conversa muito boa a respeito do humor cristão - e do mau humor do cristão também. E afinal, onde andam os cartunistas cristãos?
CCBR: A pergunta mais básica de todas: quem é Felipe Carmo e por que histórias em quadrinhos?
Felipe: Felipe Carmo é um teólogo recém-formado e mestrando em língua e literatura judaica pela USP. Ele é professor de Ensino Religioso no Centro Universitário Adventista de São Paulo e redator da Unaspress, uma imprensa universitária. E Histórias em Quadrinhos, porque ele gosta.
CCBR: Eu me divirto muito com as tirinhas de "Traços do Reino"? Como e quando começou o projeto?
Felipe: Certo dia, em 2011, compartilhei uma tirinha sem compromisso no meu twitter. Um amigo compartilhou e um pastor blogueiro viu o retwitte, entrando em contato comigo. A princípio eu não tinha pretensões de publicar tirinhas semanalmente, mas com a abertura do blog confissoespastorais.com.br, que possuía um número significativo de visitantes compromissados, resolvi mandar ver. O público começou gostar delas e, logo, percebi a possibilidade de organizá-las em um blog só meu. Lá, obviamente, eu teria mais liberdade para publicar o meu conteúdo. Foi assim que nasceu o site Traços do Reino. Contudo, devo o nome "Traços do Reino" e a iniciativa (corajosa) de publicar minhas tirinhas ao Pr. Diego Barreto, dono do blog mencionado e, além disso, podcaster. Por fim, as tirinhas sempre demonstram a atuação de dois personagens e eu considero que ainda estão em fase de formação e amadurecimento. Alguns outros personagens surgem e, certamente, surgirão com o tempo.
CCBR: "Traços do Reino" é uma série bastante ousada como todo bom cartum. Traz críticas inteligentes como cristãos zumbis e Darth Vader representando o próprio comportamento do cristão na igreja. Você sente falta de cartuns de humor de outros autores para o público cristão?
Felipe: Sinto falta de um humor cristão que remeta ao lúdico. Ou seja, um humor que consiga revisitar tabus do cristianismo; que seja audacioso para desmascarar hipocrisias; que não tenha medo de rir das próprias contradições. Em outras palavras, um humor que seja construtivo, não destrutivo e sem objetivos. Acho que os artistas cristãos precisam explorar mais a ferramenta do humor, não necessariamente com foco evangelístico, mas com o que o humor é capaz de proporcionar: o lúdico.
CCBR: Como são as críticas de seu trabalho - sejam positivas ou negativas? Os conservadores pegam no pé ou a maioria recebe seu trabalho de mente aberta?
Felipe: Eu considero minhas críticas construtivas. Não falo com vanglória. Quero dizer que elas não querem comprometer o cristianismo ou torná-lo irrelevante, como muitos cartunistas pretendem. Minhas críticas são para cristãos e, vez ou outra, também são apreciadas por não cristãos. Obviamente, já tive algumas críticas do público conservador, mas confesso que não foram muitas (e, infelizmente, não eram interessantes ou verdadeiras), talvez porque esse público não procura por conteúdo dessa natureza. Aliás, e isso é importante enfatizar, mesmo os considerados "menta aberta", às vezes, encaram algumas tirinhas com um certo asco. Isso ocorre porque não pretendo atingir um público específico; considero minhas tirinhas como um exercício de autoanálise, ou seja, a respeito do meu próprio proceder como cristão no mundo. Obviamente, os meus erros serão os de muitos outros, mesmo os mais velados. Reconhecer pendencias e contradições pessoais nunca foi uma atividade bem recebida. Não foram poucas as vezes que perdi likes da minha página no facebook logo após publicar uma ou outra tirinha mais azeda.
CCBR: Você acha que, de modo geral, o cristão aceita bem a relação fé e quadrinhos?
Felipe: Não. Eu acho que os cristãos ainda não possuem a ousadia que deveriam em relação ao gênero da arte sequencial. Somos (e pretendemos ser) demasiadamente "reverentes" diante de assuntos que nunca exigiram essa atitude puritana. Por exemplo: por que somos especialistas em reproduzir "histórias da Bíblia em quadrinhos", mas não conseguimos (ou pretendemos) ir mais além e revistar essas histórias a partir de nosso contexto? Será o cristianismo tão avesso à violência nas HQs, ou seria uma questão de utilizá-la como ferramenta para a narrativa? Os nossos super-heróis precisam ser tão "bonzinhos", mesmo quando os heróis bíblicos são representados em traços vergonhosos (como Davi, Abraão, Ló etc.)? Enfim, são muitas questões, mas acredito que todas emergem de uma mesma raiz: falta de ousadia artística.
CCBR: Como tem sido a experiência com o programa Hiperlinkados?
Felipe: O programa Hiperlinkados é apresentado no canal Novo Tempo, que é um canal televisivo da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Todos os méritos pela criatividade e produção do programa devem ser atribuídos, em geral, a Isaque Rezende, o idealizador (e "pião") dessa linguagem de interação entre TV e internet. O Isaque, sendo um amigo e conhecendo meu trabalho, me convidou para fazer parte do programa com charges feitas na hora, correspondendo de alguma forma com o assunto discutido em cada episódio. Em suma, a experiência tem sido boa, embora seja muito corrido. Ainda almejamos um pouco mais de qualidade nos vídeos, mas esse fator é irrelevante diante do que conseguimos fazer até aqui: colocar esse tipo de produção na TV.
CCBR: Os vídeos do Traços do Reino ficam ótimos.Não sei porque, mas sempre lembro do Daniel Azulay.Como é feita a produção pra transformar seus cartuns em vídeos?
Felipe: O processo é bem simples: marcamos uma data para a gravação das charges; o Isaque me envia os roteiros, para que eu possa rascunhar alguma coisa até a data combinada (o que raramente acontece, rs); chegando em casa, o Isaque monta o equipamento dele de frente com a minha escrivaninha, juntamente com todo aquele aparato de luzes para a filmagem; e, por fim, fazemos todas as charges possíveis (e impossíveis) para o programa.
CCBR: Quem são as suas referências profissionais?
Felipe: Difícil descrever todas. Se bem que, para tirinhas, eu não agrego tantas referências, visto que é um nicho que nunca havia me "entrometido". Mas posso dizer que fui influenciado profundamente por artistas como Jim Davis, Quino, Bill Watterson, Maurício de Sousa e Ziraldo, pelo menos no que diz respeito à maneira de articular as ideias dentro das tiras. Passei praticamente toda minha pré-adolescência inspirado por desenhistas japoneses como Osamu Tesuka, Akira Toriyama, Nobuhiro Watsuki entre outros. Apenas após o colegial comecei a ter mais acesso aos quadrinhos estadunidenses, cujos desenhistas que mais me influenciam contam com Tim Sale, Robert Crumb e Genndy Tartakovsky (um russo-americano).
CCBR: O massacre no Charlie Hebdo no começo desse ano dividiu opiniões. Misturar humor e religião não costuma agradar todo mundo. Você acha que existem limites para o humor do cartunista?
Felipe: Creio que existem limites; e o humor deve ser utilizado de maneira sábia. O que, na minha opinião, não foi o caso de Hebdo. Claro, eu não estou, de maneira nenhuma, justificando a morte dele por causa de sua crítica. Nada pode justificar o seu assassinato. Contudo, o fato de ter falecido em virtude de sua opinião não me obriga a concordar com ele. Em primeiro lugar, no que diz respeito à sua crítica contra a religião, ela nunca me pareceu construtiva: eram sempre ridicularizações que em nada contribuiriam para o "melhoramento" de uma crença, ou seja, não edificavam, não quebravam paradigmas, não conduziam à reflexão. Eu chegaria ao ponto de desassociá-las da categoria de "arte" simplesmente por essas pendências. Além disso, é muito fácil "falar mal" de uma religião quando você não possui vínculos com ela: a crítica é descompromissada e não redentiva; ela carece daquele carinho que torna a crítica relevante, por ser movida por preocupações pessoais, e carece, inclusive, da dureza necessária quando se trata de tópicos essenciais da mesma crença. Dou mais valor às críticas que são feitas com lágrimas nos olhos do que a gracejos sem objetivo. Acho que eles não são úteis em nenhum contexto.
CCBR: Pra fechar, deixe um recado para os cristãos que gostam de caricaturas, mas tem medo (ou preguiça mesmo) de misturar seu talento com sua fé.
Felipe: Só digo uma coisa: "Porque ao que tem, ser-lhe-á dado; e, ao que não tem, até o que tem lhe será tirado" (Mc 4:25).